Vamos repensar o uso do inglês (e outras línguas) no trabalho?

Outro dia, numa reunião, ouvi alguém dizer que precisávamos "alinhar o budget com o deadline do Q4". Juro que por um segundo achei que tinham mudado o idioma oficial da empresa e eu não recebi o aviso. Se isso já aconteceu com você, pode ficar tranquila. Você não está sozinha nessa.
A verdade é que o uso de termos em inglês (e às vezes até em outras línguas) no ambiente corporativo virou quase um idioma paralelo. Um dialeto do mundo do trabalho, cheio de palavras que muita gente finge que entende, mas que no fundo está só esperando o contexto salvar.
E sabe o que é pior? Não é só confuso. É excludente, elitista e, principalmente, é desnecessário na maior parte do tempo.
📊 Os dados não mentem — mas falam inglês demais
Vamos começar com números, porque às vezes é isso que convence as lideranças a ouvir o que a gente já tá tentando falar:
- 44% das pessoas no Brasil gostariam de eliminar ou diminuir o uso do inglês no trabalho.
- 59% disseram que, ao entrarem no emprego atual, tiveram que descobrir por conta própria o significado dos termos usados.
- 1 em cada 5 se sente excluída por não entender os termos em inglês usados nas conversas.
- 28% já cometeram erros ou passaram por mal-entendidos por não compreenderem ou usarem mal um termo em inglês. Spoiler: esse número é ainda maior entre as gerações mais jovens.
Esses dados são de uma pesquisa feita pelo Duolingo em parceria com o LinkedIn, ou seja, nem é coisa da bolha de "RH que fala sobre inclusão". É real. E se espalha.
Agora segura essa: só 5% da população brasileira tem algum conhecimento de inglês, e apenas 1% é fluente (dados do British Council). Entre a galera de 18 a 24 anos, esse número sobe para 10,3%, mas ainda assim... é pouco. Muito pouco para basear toda uma cultura organizacional.
Ah, e se você precisa de um argumento financeiro pra convencer o board: empresas podem perder até R$ 2,5 milhões por ano com falhas de comunicação. Sim, milhões.
🧠 Uma língua que não é nossa (nem precisa ser)
Antes que alguém levante a mão dizendo que “o inglês é a língua dos negócios”, calma calabreso. Ninguém aqui tá sugerindo abolir a língua da face da Terra. A gente sabe que tem contextos onde o inglês é necessário, especialmente em empresas multinacionais ou com operação global.
O problema é naturalizar o uso irrestrito de termos em inglês em toda e qualquer conversa de trabalho, mesmo quando existe uma alternativa clara e acessível em português.
Você já parou para pensar por que a gente fala "feedback" em vez de "retorno"? Ou "deadline" em vez de "prazo final"? Ou ainda pior: por que alguém escreve "let’s touch base" num e-mail e espera que todo mundo entenda o que isso quer dizer?
Spoiler: ninguém fora do núcleo “fluente com intercâmbio” entende.
🙅♀️ A elitização do vocabulário
Usar inglês no trabalho pode parecer algo moderno, globalizado, até chique. Mas, na prática, o que a gente está fazendo é colocar mais um obstáculo entre as pessoas e a comunicação clara.
E isso pesa, especialmente pra quem:
- Vem de contextos sociais diferentes;
- Não teve acesso a cursos de idiomas desde a infância;
- Está entrando agora no mercado de trabalho;
- Ou simplesmente não quer, e nem precisa, falar como se estivesse em Wall Street.
Transformar “budget” em “orçamento” não diminui ninguém. Muito pelo contrário: amplia as possibilidades de participação.
E essa é a parte que mais importa.
🚨 Comunicação não é sobre parecer inteligente
Tem gente que acha que encher uma apresentação de palavras em inglês é sinônimo de competência. Mas, na real, comunicação boa é aquela que faz sentido pra quem tá ouvindo. Não importa se é o CEO ou a estagiária do setor de diversidade.
Ser claro, acessível e acolhedor na linguagem é uma forma de respeito. E de inteligência emocional, aliás, que tá na moda falar, mas pouca gente pratica quando se trata de vocabulário.
E vamos falar a verdade? Se você precisa de um glossário para entender uma reunião, talvez o problema não seja seu inglês, é a forma como essa reunião está sendo conduzida.
🌎 E não é só o inglês: o problema é mais amplo
Embora o foco aqui seja o inglês, o debate se estende a qualquer língua ou jargão que crie barreiras. Pode ser aquele termo técnico da área de TI, o “juridiquês” do setor legal ou até aquele modismo da moda corporativa (oi, “mindset exponencial”).
Eu mesma, uma vez, fui fuçar o Código do Consumidor e, um material que era para ajudar quem compra nas lojas, só me serviu para gerar mais dúvidas e menos entendimento.
Claro que algumas palavras são difíceis de traduzir. Claro que às vezes um termo técnico é o mais preciso. Mas será que a gente está escolhendo essas palavras por precisão ou por hábito?
É hora de se perguntar: eu estou me comunicando ou só performando sabedoria?
💬 Alternativas práticas (e possíveis)
Tá, Giulia, entendi. Mas como mudar isso na prática?
Calma, aqui vão algumas ideias:
- Prefira termos em português sempre que possível;
- Se precisar usar um termo em inglês, explique o que ele significa (não custa nada);
- Crie glossários internos acessíveis para termos frequentes;
- Incentive uma cultura onde perguntar “o que isso quer dizer?” não seja motivo de vergonha;
- Treine lideranças para se comunicarem de forma mais inclusiva;
- Revise apresentações e e-mails: será que todo mundo vai entender?
Parece pouco, mas muda tudo.
🧩 Incluir começa no vocabulário
A gente fala muito de diversidade e inclusão no trabalho, e com razão. Mas às vezes esquece que uma das primeiras etapas para incluir é garantir que todo mundo entenda o que está sendo dito.
Não adianta fazer post no LinkedIn em junho sobre diversidade se, na prática, você continua escrevendo e-mails que só metade do time compreende.
A língua que escolhemos usar é, também, uma escolha política, ética e afetuosa.
🧘♀️ Respira e reflete
Não tô dizendo para ninguém se culpar por já ter dito “follow up”, “workflow” ou “briefing”. Eu também falo. Às vezes, escorrega. Às vezes, parece mais rápido.
Mas talvez seja a hora de colocar diminuir o uso de inglês no trabalho como uma das metas do trimestre. Meta de cuidado, de inclusão, de presença.
No fim, não se trata de "cancelar" uma língua. Mas de repensar o que estamos reforçando toda vez que escolhemos falar com um grupo e deixar outras pessoas de fora.
E você, já se sentiu deslocada por causa de um termo em inglês no trabalho? Como lida com isso no seu dia a dia?
Se você ainda não me conhece, prazer, sou a Giulia 🩷
Uma mulher transgênero escritora, comunicóloga e, acima de tudo, uma contadora de histórias. Acredito que a comunicação e a moda têm superpoderes: o de incluir quem sempre ficou de fora.