"O salto alto te empodera" - eles disseram…

"O salto alto te empodera" - eles disseram…
O texto abaixo é uma crônica que sobre uma terça-feira qualquer com o charme de quem sabe transformar perrengue em história boa. Uma saga de estilo no transporte público, uma mistura de vaidade e logística. Tudo com um toque de ironia leve que só quem já foi derrotada por um ônibus lotado pela manhã consegue escrever. É sobre rir para não chorar e, no fim, aprender algo sobre conforto e estilo.

Tem dias que a gente acorda pra brilhar e, em outros - a maioria - parece que a vida só quer fazer piada da nossa cara. Na verdade, tudo começou na noite anterior. 

Eu sou virginiana, né? Aí que eu uso um aplicativo de guarda-roupa digital. Basicamente, nele eu tenho todas as imagens das minhas roupas, sapatos e acessórios. E lá, eu posso criar meus “lookinhos” do dia. Muito que bem, muito que bom. Eu estava criando minha roupitcha do dia seguinte para: 1. Já entender se a combinação funciona ou não;  2. Perder menos tempo provando de manhã. Eis que aconteceu. Fechei os olhos e, num efêmero momento de sono profundo.

Fui acordada pela crescente música calma tocando do meu despertador. Capotei sem perceber. 6 ou 7 horas se passaram em cinco minutos e chegou a hora de acordar no susto, ainda entendendo o que aconteceu. Quem nunca, né?

Terça-feira, dia de presencial. É um privilégio gigante ir ao escritório da empresa só uma, duas, às vezes, no máximo  três vezes por semana. Eu sei que é. E como muito da redescoberta da minha identidade pós transição de gênero está acontecendo por conta da moda, eu aproveito esses dias pra me conhecer um tiquinho mais.

Mesmo acordando no solavanco, minha rotina matinal seguiu conforme eu gosto. Café. Leitura. Banho. Chegou a hora de conferir o look do dia no aplicativo. Uh! Boa escolha: um “body” preto, simulando uma regata, calça larga também preta e o charme: uma tamanquinha com salto de 7 cm, vermelha envernizada. Linda! Tudo isso com acessórios dourados e “voilá”, temos a “roupa do dia” perfeitinha.

Eu estava pronta para ir, mas  algo me avisava que o dia  não seria tão lindo quanto minha roupa. Conferi as coisas dos gatos, dei aquele beijinho charmoso na minha companheira, calcei a tamanca e fui desfilar, digo, trabalhar. Papo sério que quando me sinto bem com o look que estou usando, acho que até ando mais rebolandinho, sei lá - fonte: Giulia de dentro da cabeça.

Tava calorzinho, acertei no body. “Taque, taque, taque…” era a voz que ressoava a cada passo meu. Cheguei no ponto de ônibus. Sim, tenho 33 anos e não sei dirigir, nunca tive vontade. Meu trajeto então é: ônibus para o metrô e, então, para o trabalho. Às vezes, ostento chamando um Uber, mas não tava afim de gastar 25 pila naquela manhã. Sequer estava com pressa.

Parecia que a sorte estava do meu lado, o ônibus que pego chegou pouco depois de eu “aterrissar” no ponto. Chegou a hora de o destino começar a me ver como uma palhaça. Ele brincou de tirar o doce da criança, sabe? De que adianta chegar a minha “carruagem” e ela estar abarrotada? E enchendo. E enchendo mais. Olhei para o relógio. 07h55, dava pra esperar o próximo.

Normalmente, o ônibus que pego, passa de 12 em 12 minutos. Então, eis que 08:07, ele surgiu no horizonte. Todo bonitinho, com sua pintura verde e prata. Os ônibus coloridos de São Paulo são demais, sempre gostei. Ele foi se aproximando e logo meu ânimo foi se transformando em desânimo. Mais uma lata de sardinha. Olhei minha agenda no celular e estava lá, o que eu mais temia, reunião às 09h30. Teria que embarcar nesse. Não tinha como escapar.

Lá fui eu pra aquele empurra, empurra clássico de condução cheia. Uma vez que você se mete num transporte assim, você perde a sua autonomia de locomoção. Papo sério. Eu, achatada, com minha bolsa grandona preta, pesada por causa do computador da firma, sem sequer conseguir espaço para apoiar minha mão em algum segurador e o detalhe, me equilibrando no salto 7 cm do meu sapatinho vermelho. Baita escolha. Parabéns Giulia.

Eu sei, eu sei. Primeiro, eu que escolhi meu look. Segundo, que papo é esse de que salto alto te empodera? Fato é que eu me sinto bem e feminina com sapatos assim, só que não dentro um ônibus cheio, logo cedo, por 45 minutos.

Eu até escolhi bem, sabe? Esse sapato é confortável de andar, não é muito alto, mas não dá pra ficar tanto tempo assim em pé, sem usar nenhuma outra parte do corpo pra se apoiar sem que as bolhas na parte superior dos dedos não comecem a surgir. O problema? Ainda tinha um longo dia pela frente.

Claro, fiquei descalça ou sentada o quanto pude. Na volta pra casa? Me segurei no escritório o máximo que pude pra ter certeza de que voltaria sentadinha no ônibus. Nesse dia, minha lição veio logo cedo. Não pegue o ônibus de salto alto. Nessa carroceria da Mercedes-Benz, não existe luxo. Nem espaço pra desfilar. Tem horas que sequer tem espaço pra ficar mesmo.

A partir desse dia, meu saltinho de praxe sempre tá comigo, na bolsa, aí eu só calço quando já estou  no metrô e sou feliz assim. Meus pés agradecem.


Se você ainda não me conhece, prazer, sou a Giulia 🩷

Uma mulher transgênero escritora, comunicóloga e, acima de tudo, uma contadora de histórias. Acredito que a comunicação e a moda têm superpoderes: o de incluir quem sempre ficou de fora.